segunda-feira, 22 de abril de 2013

António Aragão - Poema Primeiro, 1962 (Uma Preciosidade)

 


POEMA PRIMEIRO


assim começo desviado asco no rosto
no avesso da noite porosa e adversa
onde me alarmo e recuso secreto
o corpo salpicado súbito de saques
a beber o vazio da sombra na concha liberta
à beira do poço e dos seios ofendidos
(no ar o gosto à pedra do teu gosto)
com tantos medos na poeira casta
e uma semelhança escapada gente
a nascer-me choro preto


(nós sem finalidade aqui cobertos de perfis
neste engano de ter um nome e um susto)
pobre de morrer meu tão pouco de pátrias
rico de espadas
coagulado de ouvidos
no musgo dos hálitos
ameaça parida abismo
sinónimo de ficar vasto de saliva
(tua a minha saliva transfigurada de vertigens)


escuro maior
sepulto germinal
(teu corpo lunar líquido e corrosivo
e o princípio químico das tuas mãos exactas)
assim nasço corrupto de sinais e distância
por agora prurido de palavras
sono gerado extenso de fragmentos
nesta noite suspensa dos ossos matinais
(querida quero-te tanto de te querer
mansa viagem de sal aberta espuma
que sou para ti? terra dominada
vasta de ausência coberta de mim
corpo a florir o peso das cidades)
e regresso claríssimo aos confins dos objectos
apalpo o pólen e as cartilagens
e vejo o peixe na casa de quando estavas
(depressa sem tempo de gostar
ficam-me teus beijos nas arestas de viver)


 sòmente o cadáver ocasional em torno de ser azul
fértil no bafo fechado a cimento
do espaço acusado na rede dos braços

 há passos ardidos à beira dos instantes
repetem-se diâmetros no tempo

 (virginal sabor da tua boca destruída)
depois respondo minha origem precipitadamente pedra
recente de violências na porta sussurrada
e pelas ruas densas de ir sem história
pasmo meus músculos desconexos
murmuro aço perseguido
nesta ausente farsa vingada de aves

comêço fácil de árvore nas vértebras
espera nua de cal e metafísica
e rouco de espectros na denunciada ferida
espanto meu canto solitário
e narro pressentida urina e ferro
no fumo inteiro da tona dos olhos
(de quanta casa nossa quanta
em nossa memória somos traídos?)

 ovo e grão no verbo submisso
quente de pausas e cuspo


ainda quanta tarde escuta
no muito que me falo de gostar ave
no líquen fundido crente na pele
no fundo do ruído de ter sexo
nos triturados vértices
(que ficar a olhar-te sabe sangue
e a alegria decapitada de ver-te
prende meu assombro de dor presente)


pervertido no leite
alto de sombras
sofro o medo meridiano dos olhos
(em tuas veias querida descansamos
tu e eu amor na contagiada cama
companheira viajada nua no encontro)


assim repudio a exígua casca
e o razoável sulco de regressar rua
último abrir de oiro
imerso frio
e cisco


não dada flor
não fruto posto
agora face voltada no chão
(tu sabes lembrar a areia sobre o rosto)
na cinza dos vales
nos meus detritos
lá onde calo os pés no tempo
falado de andaimes e roubos submersos
sêco no início velho do ventre


(que és para mim que te guardo larva
e comportas minhas esperanças inúteis
manhãs de patas e homens
onde ambos moramos morte?)


rio na boca
mão na flor
penumbra de lâminas à roda da alma
outro punho danado convulso solitário
outra pedra mãe esculpida morta
(de querer-te instante a pele apodrece
sob teu fruto nado de petróleo e incenso)


junto do silêncio
ao nível dos pés
aguardo o pássaro crescido de dia
traído de ânforas e incontidas fezes


refaço-me de motores
predigo o lenho
invento a mesa
consumo a cor
(mastigo a solicitude de teus seios e cabelos
trazidos suspeitos à sombra dos portais)
e descubro o cântico contaminado
da liberdade possível apenas de calar-me
(ouço a tua forma nos limites da paz
e a perseguida figura tua exposta incólume
no espaço urbanístico dos lábios)


água reclusa nas espáduas
pés lisos da murta e do ódio


e pelo tempo violado dos muros
aguardo o cheiro dos vultos saqueados
da máquina soberba
e do cavalo-vapor


minha fala acontece pânico
a pouco e pouco no mar
ouço existir durar-me
sobrevivo aço na memória
e concluo cedo de causas
apodrecendo chuva no ar
(ouço-te às escondidas)


depois transido de ervas claras e europa
fico quieto na idade de olhar meus monstros
de construir de teias a boca
e as palavras plurais do desejo
depois estagno futuro tardo face
fico a revolta consentida no calor das plantas
entre o perdido aroma reflexo de lanças
e o doer bastante do meu perfil no frio


e espero nos vãos dos ruídos
o gritar dos dedos nos buracos dos bichos
(dá-me querida o pão dos rochedos
e a chuva movediça nos teus braços nossos)
e apresso a cinza no vulto do choro
com dádivas sucessivas de paz e respiração
os poros estivais tanto de negados
sujo de planos e fórmulas metálicas
no horário dos ossos
no côncavo das portas
no temor das mãos
onde um réptil sagra e desespera


peixes morrendo à míngua de olhos
num tempo que me obrigaram


(imóvel de limos estagno teus sorrisos
e aspiro o som dócil com que reapareces)
e moro-me desordenadamente muito
excesso de me nascer meu e contrário


eu vagamente acontecendo na obscuridade
a sobreviver no bafo dos intervalos
destruída a lembrança no mito de ver-me
carregando os pulsos regressados de súplicas
por entre cachos obscenos e ferozes
(tu astroave fantástica de olhar nada
a consentir tua ausência respirada minha)


pareço o princípio que em mim começa
magoada noite fácil de ter medo
que emerge entre quatro desejos
e aponta os quatro cumes dos olhos
paisagem incinerada dormindo sal
pareço o breve jogo de identificar-me
cabelos de silêncio por geometrias que pasmo
a tocar a repetida urze desflorada
objectivamente numa penumbra de joelhos
(urge minhas mãos calcadas no teu corpo)


eis-me na liberdade de ser o que em mim acaba
hábito dum nome fecundo de incestos
fugitiva margem de manhã extinta
a persistir zoológico de punhos e carícias
fechado de terra e frutos deflagrados


uvainsecto
espaçochumbo
começo bárbaro de mijo e símbolo


caminho aflito na denúncia dos mapas e navios
apanho meus gestos e cumpro o luto
e confirmo gente casas e o dia a dia
exactamente as vozes sobre os portos
de borco a extinguir-me
demasiado hoje
excedida ausência no escuro
(e aspiro-te na fenda dos ventos
esperando contigo o esquecimento das idades
suspenso na surpresa dos teus olhos
a flor das mãos tecendo fontes no teu corpo)


invento-me de engano
esgoto de pensar a paisagem


dentro de ser hoje o vidro da lua
ferido de claros excrementos e geografia
e esta angústia inenarrável de pensar os ossos
anti-voz dormindo músculo
de costas estèticamente com espingarda
recíproco nas horas de estar com os outros
infestado pelos maxilares inexoràvelmente
o mamilo esculpido no eco da noite


sei que nenhum gosto virá salvar-me
debruço-me poeira e cubro-me de ontem


(nada sabe mais a nada hoje que nós)


moro-me suspeito de números e asfaltos
os pés construídos no hábito oculto do sono
húmido de vermes e muito nu
acessível ao choro e visitado de origens
com a interdita e lêveda frase condenada
na parecença da chuva inviolável
cometida procriada cínica
felino de análise e estrume
nesta racionalidade dos grandes lamentos
moro-me algèbricamente num excesso de cidade


e trago o desespero acordado de sempre
como as pulsações impessoais dos anjos caídos
e olho a casa o vinho o lugar onde ia
e o cântico maldito
por onde me bastava
com unhas fechadas
(beijo a simetria da tua ânsia
com a boca no ventre da paisagem)
e pelo tempo de dizer meu ainda
neste nunca recuperar das folhas e conceitos)
depois de me erguer vasto de cara e bolor
cresço plantas razoáveis e proibidas


e permaneço debaixo dos tectos
paramentado a azul
com bichos a nascer convexos de retratos
às horas talvez de acender assombros na alma
na remota expiação de não ser nada depois
os dentes cerrados no saque de sentir-me
na recusa de possuir as costas
os braços escritos no escuro
e as veias estipuladas ao longo do chão
(só tu abres jardins de hoje
à porta descoberta de tocar o corpo)


em pé a ler a carta com um pouco de sol
na sempre tristeza de me sentir triste


(nessa manhã repousando dedos no ar
nós os dois na inconsciência do fruto
vastos de olhos um para o outro)


lá aumentada viagem
dos lábios-praia doridos
a ficar pó ou névoa dividida
pedra fêmea de regressar
da ambígua gesta de chãos
parece grão parece espada
parece repetir nada de nada
fuga de água face revestida
talvez noite suspensa mesmo signo
talvez distância sombra
ou casa nos sentidos


(que altura trazes para mim
que te acaba o estar presente
e aquece e acusa a pele?)


verde retido dos encontros
sonoras glândulas submersas
minhas esquinas de gostar tão perto


consagro espasmos meço-me habitado
sempre excessivo de procurar o corpo
com ritos de saber água tenra nos sentidos
à hora de guardar as asas dos insectos
numa cor igual de olhar o mosto das imagens
(intenso lume no jogo de querer-te)
e experimento o gosto de extinguir-me
agrupado entre muros desertados
a ver o segredo das coisas a ver
o grande olfacto na escuridão


(tu perfumas minhas intenções de ser
antes das portas tuas das escutadas carícias)


paro na presença nítida das camas
junto ao hábito de olhar medo
resistente ao cuspo prometido
e confecciono o horror de perder-me
na memória do repouso
com os soldados pisando as loucas marés
(não esqueço a lâmpada com que te reconheço)
e minam meus pés de início frio das escamas
com vícios de vir junto das artérias


(e permaneces rápida haste reunida
sobrando tua epiderme por sobre tudo
quanto mais de aventura possuída
tua forma mansa salpica de hoje
minhas conquistas de perder sòmente)


livre saqueado livre
imediatamente cadáver dirigido
sangue vegetal
fala obstruída
secreta víscera
sujo de pertencer tão pouco
com a noite a permitir o muro


sempre a cumprir a ameaça
de apontar os sustos


(ainda bem querida que vieste
no meio de negar as costas
com a mesma teoria de crescer pássaros
livre a percorrer as pernas)


e assim durmo o peso
que estala atónito escasso lôdo
pressentido junto à camisa
a mão no sexo sem leito nem aves
simetria falsa de anjos e espadas
tremendo fogo estreito na vidraça
porque demais me expulso da preenchida morada
prematuro de intentos
sem jeito no limite inteiro
a urina casta a escorrer-me dos gestos


(tu nuclear de bocas a roçar-me
resíduo de mar resto de lua
nocturna de apelos e lugares)


retiro a mão do dorso das biografias
convulso de poemas e máscaras
e sùbitamente mastigo a cera das palavras
na obscura grande música circular
que em mim se liquefaz fêmea
crescendo ferrugem de leite
resina a arder no centro das órbitas
a procriar um campo de grades
e densamente acordo para o sul
assim no degredo das vozes
e caso palavras e ossos no modo de me saber
(e tu respiras desintegrada na cama
exausta de espelhos e hábitos)


acordo o cheiro da folha
no cimo do ar desamparado
no princípio de corromper um peixe
lábios molhados no escuro


começo trepidação
recolhido de máquinas e poeira